É muito comum aqui no Brasil colocarmos a culpa no próprio indivíduo brasileiro pelas grandes dificuldades que passamos, atribuindo a uma suposta hereditária fragilidade de caráter a causa da nossa aversão ao cumprimento das leis, à solidariedade e ao trabalho ético e produtivo. Quantas vezes já ouvimos a expressão jeitinho brasileiro para explicar algumas malandragens.
Atribui-se ao fato de sermos brasileiros a causa de: cinquenta mil assassinatos e centenas de milhares de roubos por ano; sessenta mil estupros anuais; trinta e cinco mil acidentes fatais de trânsito por ano; um dos maiores índices de desigualdade social do mundo; favelização descontrolada das moradias; mais da metade da população nacional sem acesso a água potável e a esgoto; discriminação racial e homo afetiva; formação de perigosos cartéis de tráfico de drogas e de “estados” milicianos paralelos dentro de comunidades; devastação da Amazônia; à má escolha dos governantes; e todos os últimos governadores eleitos do estado do Rio de Janeiro, centenas de políticos e milhares de empresários foram acusados por atos ilícitos como corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa e improbidade administrativa.
De outro lado atenuamos o sofrimento que nos causam tais tragédias com a valorização de comportamentos, também ditos como naturais do ser brasileiro, que expressam alegria, cordialidade, hospitalidade, capacidade para fazer arte, festas, piadas, músicas e ritmos, além, claro, do futebol.
Será que seria assim mesmo? Estaríamos nós brasileiros condenados, pelo inerente fato de sermos brasileiros, a viver nesse estado de coisas? Seríamos seres humanos diversos dos habitantes da Europa e da América do Norte, da Ásia, África e da Oceania? Nossos cérebros funcionariam diferentemente? Se Deus é brasileiro, teríamos uma alma própria e distinta dos demais povos?
Nós brasileiros somos recentíssimos, enquanto seres humanos somos produto de milhões de anos de evolução, com os atuais traços físicos marcados pela ciência em cinquenta mil anos. Os tupis e os guaranis nada mais eram do que os humanos aventureiros que ao longo de milhares e milhares de anos migraram da África para a Europa e Oriente Médio, dali para o norte da Ásia, atravessaram o estreito de Bering em direção ao Norte da América e desceram até o que hoje denominamos Brasil. Os europeus que aqui chegaram em gradativo processo de imigração (portugueses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, ingleses, holandeses, irlandeses, poloneses) são produto de intensa miscigenação ao longo de mais de quarenta mil anos, todos originários igualmente da África. Os libaneses, sírios, turcos, japoneses e chineses que também migraram para o Brasil, não têm origem diferente, assim como e obviamente nossos sofridos irmãos africanos que foram escravizados e trazidos a força para cá.
Por isso é difícil aceitar que os problemas existentes aqui no Brasil seriam decorrentes de nossa nacionalidade: “sou um brasileiro, putz….”. Em quinhentos anos não há meios de haver mutação genética a ponto de alterar como nossos cérebros respondem à legislação, ao bom senso comunitário, à autoridade, ao respeito ao próximo. De tempos em tempos achamos que as leis e as penas não têm sido pesadas e duras o suficiente, e assim as aumentamos, e criamos processos rígidos e várias categorias, como o de crimes hediondos e inafiançáveis. Mas, como evidente, nada disso tem funcionado.
A dificuldade estaria, então, na cultura? Apenas aqui temos o costume de agir violentamente, assassinando e roubando nossos vizinhos? É cultural a compra e a venda de votos nas eleições e de sentenças judiciais nos Tribunais? É a cultura propriamente brasileira que estimula comportamentos antiéticos, injustos, egoístas e desonestos? É isso que se ensina nas escolas, nas famílias, nas rodas entre amigos, nas novelas, na imprensa, nas igrejas e praças?
Há algumas décadas pesquisas vem demonstrando como os seres humanos conformam seus comportamentos, a partir de quais estímulos agiriam da forma ‘a’ ou da ‘b’. Isto tem sido nomeado como vieses comportamentais, importantes referenciais para que os países possam melhor conceber as suas ordens jurídicas (Direito) e estruturar as suas instituições públicas. Tem ficado cada vez mais claro que os países mais bem desenvolvidos, em que há maior respeito ao próximo, com maiores índices de desenvolvimento humano e crescimento sustentável de suas economias, são aqueles que compreenderam como deveriam estruturar o seu Direito e suas instituições para estimular adequadamente os seus cidadãos a conformarem seus comportamentos na direção dos valores que almejam alcançar.
Então como podemos fazer para ajudar nossos concidadãos a respeitaram mais os valores, princípios e leis que pautam nossa sociedade? Já se verificou que há um padrão, em todos os humanos, de agirmos conforme a experiência real vivenciada a partir da resposta que nos é dada por aqueles que conosco interagem, em outras palavras: conformamos comportamento a partir de feedbacks recebidos e observáveis de nossas atitudes reais no dia a dia.
Se uma criança puxa o cabelo da irmã ou de uma colega e é repreendida imediatamente por algum adulto e/ou outras coleguinhas, ela não apenas tenderá a deixar de agir assim como também não chutará a irmã e nem outra criança em condições similares. De outro lado, se ela ajuda a irmã ou a colega e é valorizada por tal ato, tenderá a repetir no futuro tanto para a irmã como para outros.
Se estaciono o meu carro em um lugar proibido e quando volto o carro foi rebocado ou recebi uma multa, a tendência é evitar de parar novamente o carro não apenas naquele específico lugar proibido, mas em todos os demais lugares proibidos que encontrar. O inverso é absolutamente verdadeiro, se não há repreensão desse comportamento, tendemos a parar em outros lugares proibidos quantas vezes acharmos conveniente. Se a cada dez paradas irregulares houver apenas uma multa, é também reforço negativo de comportamento indesejado.
Ou seja, é por meio da observação do resultado, positivo ou negativo, dos diferentes cursos de suas ações que as pessoas aprendem que tipos de atitudes são mais ou menos adequadas para cada situação.
Ademais, para que funcione, a repreensão deve ser próxima do evento e justa o suficiente para que não seja compreendida como desproporcional e ilegítima pelo próprio infrator e por aqueles que o cercam. Não adianta repreender o infrator depois de passados anos do fato, assim como não funciona uma pena demasiadamente bruta para o peso da infração, o sentimento de revolta que isso trás pode piorar o comportamento do agressor.
A altíssima taxa de assassinatos no Brasil é produto de feedbacks equivocados dados pelo Estado brasileiro a milhões de nossos adolescentes e jovens pobres. Antes de chegar ao ponto de escolher por assassinar um rival ou uma vítima, o assassino iniciou sua juventude furtando pequenos objetos, depois passou a roubar e a assaltar, tudo sem que fosse repreendido imediata e adequadamente pelas instituições de segurança pública. O fracasso do sistema educacional público brasileiro (salvo raras exceções) faz piorar o quadro de abandono que milhões de nossos jovens se encontram, levando-os a encontrar apenas péssimas referências para suas vidas.
O mesmo acontece com o político corrupto e o empresário corruptor, que antes de lavarem milhões de reais em propinas começam com pequenos presentes, trocando favores e viagens, tudo sem que as instituições públicas os repreendam a tempo e a modo. Além das instituições públicas, também as organizações privadas com suas falhas governanças acabam fazendo vista grossa sobre tais desvios, quando não promovem e/ou incentivam com bônus o executivo metido a espertalhão.
Mas não paramos por aí: o garimpeiro que começa com uma pequena exploração ilegal aqui acaba por desmatar demasiadamente ali; o invasor de terras que ocupa um pedacinho de terra alheia ali; o camelô irregular que contrabandeia uns cigarrinhos e depois acaba com armas militares acolá; o industrial que lança ilegalmente nos rios um lixo e por fim poluentes tóxicos; a mineradora que negligencia um procedimento de “menor importância” e acaba protagonizando uma tragédia indesejada; e assim vamos, desgovernados, sem que as instituições do Estado brasileiro fiscalizem, controlem, regulem e repreendam no tempo e na medida certa.
Mas por que o nosso Direito e as nossas instituições falham a tal ponto? Simplesmente porque não lhe damos a devida atenção, não investimos as energias e os recursos necessários para aprimorá-las. Um bom exemplo é a segurança pública dos estados membros: quando comparamos os valores orçamentários dirigidos às polícias para o melhoramento de suas instalações, laboratórios, tecnologias e formação profissional, o que vemos é que tais valores são insuficientes e proporcionalmente muito menores do que os recursos orçamentários destinados ao Poder Judiciário e ao Legislativo, onde juízes, serventuários do judiciário, deputados e seus servidores, assim como suas enormes instalações, capturam proporcionalmente quantidade muito maior dos nossos impostos. Ou seja, colocamos nossos recursos e energia em locais inadequados, pois não é com criação de leis e nem com demorados julgamentos ineficientes que iremos ajudar nossos cidadãos a conformarem melhor seus comportamentos.
O mesmo se dá quando negligenciamos a modernização de nossos órgãos reguladores, que deveriam estar mais bem preparados para controlar e regular prestação de serviços públicos e as atividades econômicas essenciais, como mineradoras e exploradoras de óleo e gás, operadoras de saúde, de energia elétrica, de telefonia, de transporte público e privado, de saneamento. Contudo não é o que se verifica, pois ou são extremamente fracas e sem autonomia (capturadas pelo político) ou estão aprisionadas em excessos burocrático-regulatórios ineficientes.
Para piorar todas essas circunstâncias, o Direito brasileiro ainda consegue desestimular comportamentos que gerem inovação, investimento, empreendedorismo e a criação de postos de trabalho, criando na verdade insegurança jurídica para todos. Exemplo claro é o longo e difícil caminho do credor para obter a satisfação de seu crédito pelo devedor; o fracasso do complexo sistema jurídico tributário; o ineficiente e autoritário processo penal; a imprecisa e burocrática legislação administrativa e de contratações públicas; as normas legais e infralegais que favorecem pequenos grupos com subsídios e isenções de impostos, e outras que criam protecionismos fazendo do Brasil um dos piores lugares do mundo para se fazer negócios.
O Direito produzido nos 5.570 municípios, nos 27 estados da federação e na União ainda é capaz de criar inúmeras formas de privilegiar uns em detrimento de muitos, de aumentar gastos correntes com atividades não prioritárias, que não levam ao desenvolvimento humano e nem econômico.
Podemos dizer que continuaremos frustrados como brasileiros se mantivermos nossas atenções e energias voltadas para as próximas eleições para Presidente e para a eterna disputa infrutífera e retrógada entre partidos políticos que se autodenominam enganosamente de esquerda, de centro ou de direita. Ao invés disso, deveríamos urgentemente ampliar nossas energias para diagnosticar, sistematizar e solucionar os graves problemas do Direito e de relevantes instituições brasileiras, pressionando nossos legisladores, gestores públicos e privados, formadores de opinião e imprensa livre para acelerarmos a modernização da ordem jurídica e das instituições nacionais.
A culpa por nosso estado de coisas não é do brasileiro, por ser um brasileiro, mas do Direito brasileiro. Arrisco-me a afirmar que se colocássemos nossa ordem jurídica e nossas instituições em países como o Japão, a Alemanha ou os Estados Unidos, eles, em poucos anos, passariam a ter similares problemas que nós. E ao invés, se trouxéssemos suas instituições e ordem jurídica para cá, independente de virem pelo partido Democrata ou pelo Republicano, pelo partido alemão União Democrata Cristã ou pelo SPD, pelo japonês liberal democrata ou pelo democrático constitucional, todos implantariam as mesmas urgentes e prioritárias medidas já testadas e reconhecidas mundialmente como eficientes, sem ficarem batendo cabeça com discussões tidas como de direita ou de esquerda.
Autor: Alexandre Aroeira Salles é doutor em Direito